“Quando decidimos adotar, nos inscrevemos apenas para uma criança. Mas, quando visitamos um abrigo, saímos de lá com nossas filhas gêmeas. Teve o dedo de Deus, com certeza”. A lembrança é da advogada Sara Vargas, de 47 anos, que sempre teve o sonho da adoção, mas planejava adotar apenas uma criança. Contudo, quando foi a um abrigo em São Paulo e passou um dia no local, conheceu Kelly e Kethlen, meninas que hoje têm 15 anos, e foram adotadas aos quatro. Mesmo com a certeza de que queria acolher as duas meninas, estava sem jeito de contar ao marido que a família, que mora em Uberlândia, ganharia mais um membro além do previsto. Para sua surpresa, o marido compartilhava dos mesmo sentimentos: “O amor não escolhe. Nós dois tivemos certeza.”
Atualmente, o número de pessoas interessadas em adotar é doze vezes maior que a quantidade de crianças disponíveis para adoção. Ainda assim, muitas delas passam a vida em abrigos públicos, sem um lar. De acordo com o Cadastro Nacional de Adoção, existem 4.881 crianças cadastradas para adoção no país. Dessas, 3.206 (65,68%) têm irmãos. No entanto, entre os 40.306 brasileiros interessados em adotar, 26.556 (65,89%) não querem crianças com irmãos. Os dados mostram o descompasso histórico entre o perfil desejado de futuros pais diante dos futuros filhos adotivos.
Outro impasse no momento da adoção, além das crianças com irmãos, é de pré-adolescentes, adolescentes, ou com problemas de saúde. Nos dados nacionais, há 1.920 crianças acima de 15 anos disponíveis para serem acolhidas, o equivalente a 39,33% do total. No entanto, os cadastrados interessados neste tipo de adoção chegam a apenas 66 no CNA, o equivalente a 0,16%. Além das gêmeas, Sara e o marido, Rodrigo, com quem é casada há 21 anos, acolheram mais uma criança – Jéssica, que também tem 15 anos. Mãe de quatro filhos – três adotivos e um biológico -, Sara ressalta a importância de ter contato com as crianças pessoalmente, de maneira real, antes da adoção. “O que fez a gente mudar nosso perfil foi conhecer as meninas. Quando eu conheço crianças com irmãos, isso me faz refletir que eu consigo ser mãe delas”, afirmou. O engajamento da advogada só aumentou depois da acolhida. Atualmente, Sara é presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), que tem contato direto com grupos de apoio à adoção em todo país.
A advogada conta que antes de se casar com Rodrigo, o casal já conversava sobre a adoção. A vontade de ser mãe falava mais alto e, ao tentar engravidar, teve três abortos espontâneos. Um antes do Lucas, o filho mais velho, de 19 anos, e dois depois. À época, a solução para ter outra gravidez bem sucedida seria apenas com inseminação artificial. Contudo, o preço do procedimento afastou a ideia do casal. O alto custo só fez lembrar o que já existia: a vontade de adotar.
“Nos inscrevemos no processo e, quando já estávamos habilitados, fomos conhecer um abrigo a convite de um amigo nosso. Na época, as gêmeas tinham 1 ano e 1 mês e não haviam sido agraciadas por uma família. Até que demonstramos o interesse”, lembra. Apesar da certeza de que as duas eram suas filhas, a advogada lembra que o processo deu uma reviravolta e o Judiciário local pediu que elas se reaproximassem da família biológica delas. A experiência não deu certo e, com quase 6 anos, finalmente passaram a viver com Sara e Rodrigo. Nesse meio tempo, adotaram Jéssica, com 3 anos e 10 meses.
“Perfil ideal”
Walter Gomes, supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da VIJ-DF, explica que a maioria das famílias que deseja adotar deseja crianças sem irmãos e com a faixa etária bastante restrita. Já as famílias que admitem acolher irmãos, aceitam até duas crianças, mas também com idades mais baixas, com no máximo 5 anos. A maioria dos grupos de irmãos cadastrados para adoção envolvem crianças pré-adolescentes e adolescentes. “Grande parte das crianças disponibilizadas que têm irmãos pertencem a faixas etárias mais avançadas, e isso dificulta ainda mais a possibilidade de virem a ser adotadas”, acrescenta. Para o especialista, o número de adoções aumentará efetivamente quando as famílias habilitadas flexibilizarem o perfil desejado. “Toda adoção impõe desafios que devem ser superados. Com ou sem irmãos, as dificuldades são previsíveis e devem ser enfrentadas com determinação, disponibilidade afetiva, criatividade e responsabilidade parental.” Historicamente, Walter explica que a cultura de adoção no Brasil sempre privilegiou e incentivou o acolhimento de recém-nascidos, ao mesmo tempo que cercou de hesitações a adoção de crianças maiores, em especial de adolescentes. “O desafio é promover uma nova percepção a respeito do perfil desejado para adoção de maneira a contemplar o real perfil do cadastro de disponibilizados.” Para desmistificar a adoção de irmãos, Walter ressalta que é importante permitir que o projeto de adoção de uma família seja essencialmente conduzido pelo princípio do amor incondicional, “em que exigências sejam desconstruídas, e os medos e preconceitos em relação ao perfil desejado sejam superados.”
Números do DF
No Distrito Federal, há 118 crianças e adolescentes disponíveis para adoção, sendo 30 acima de 15 anos, e ainda não houve nenhuma adoção do tipo este ano. Já crianças com irmãos, hoje contabilizam 58 no Distrito Federal, e 12 já foram adotadas em 2018 – três grupos de dois irmãos e dois grupos de três irmãos, sendo um deles um casal de gêmeos. Do total de famílias habilitadas para adoção no DF (523), 301 não aceitam crianças com irmãos, enquanto 222 admitem adotar crianças com apenas um irmão, desde que a faixa etária não ultrapasse cinco anos. Todo adolescente ao atingir a maioridade civil (18 anos) perde a tutela jurídica da Vara da Infância e da Juventude e tem o seu nome automaticamente excluído do Cadastro Nacional de Adoção.
“Parece uma escolha, mas é uma certeza”
O morador do DF e estudante de Comunicação Social, Pablo*, de 20 anos, e os dois irmãos, um de 22, e uma de 19, foram acolhidos ainda pequenos, no Rio Grande do Sul. Com menos de dois anos, ganhou uma família. A pouco tempo de se formar, ele não se cansa de agradecer. “Quando paro para pensar, só tenho graças aos meus pais. Eu sou muito grato a esse ato de amor que é adoção”, diz. Separados ao nascer, os três irmãos foram adotados pela mesma família em momentos diferentes. O mais velho, quando ainda era bebê e, a mais nova, antes de Pablo, com menos de um ano, e só depois foi a vez dele, com quase dois anos. O jovem só conheceu os irmãos em casa, com os pais: “Eles souberam que ela tinha um irmão, foram atrás, e me adotaram também. Quando me viram, também tiveram certeza que eu era filho deles. Foi um processo natural, porque eles também acreditam muito em adoção e em juntar irmãos.” O estudante conta que a relação deles com os pais é de amizade e muito companheirismo, e desde de muito novos foram comunicados sobre o passado deles, com muita clareza e amor. Independentemente de ter vindo ou não da barriga da mãe, Pablo ressalta que, antes de tudo, eles já eram filhos de seus pais adotivos. “Eles sentiram que eram nossos pais. Parece uma escolha, mas é uma certeza. Por isso lutaram para prosseguir com a adoção. Sou filho dos meus pais adotivos e sou irmão dos meus irmãos”, conclui. *Pablo é um nome fictício do personagem, que preferiu não ser identificado. Fonte: Correio Brasiliense